sexta-feira, 21 de abril de 2023

A banalidade do aborto e da eutanásia

No ano passado, li "Ordinary Men: Reserve Police Battalion 101 and the Final Solution in Poland" (1) de Christopher Browning, uma obra que acompanha o percurso dos polícias do Batalhão 101 durante a Segunda Guerra.

Browning propõe e defende que se estudem os crimes dos nazis com base na sociologia e na psicologia das pessoas comuns, e não dos psicopatas: pessoas comuns, tal como os polícias que compunham o Batalhão 101. O livro de Browning é muito incómodo e ainda não deixou de gerar polémica desde que surgiu em 1998.


O Batalhão 101 era composto por cerca de cinco centenas de polícias naturais da cidade de Hamburgo. Muitos eram polícias na reserva que o Terceiro Reich recrutou para tarefas sujas. Nos primeiros anos da guerra, essas tarefas consistiam em vigiar prisioneiros nos territórios ocupados à Polónia, no chamado Warthegau. Mas a partir do Verão de 1942, há uma viragem dramática na direcção do genocídio. No caso do Batalhão 101, a sua experiência inaugural com o genocídio tem lugar na aldeia polaca de Jósefów. Na madrugada de 13 de Julho de 1942, a esmagadora maioria dos homens não sabia ao que ia: sabiam apenas que iam receber uma missão especial. Ao raiar da aurora, chegam a Jósefów e recebem de um comandante Trapp em visível estado de ansiedade as instruções do dia. Teriam que ir, casa a casa, recolher todos os Judeus da aldeia. Os que se recusassem a sair de casa ou não se pudessem mover deveriam ser executados na hora. Os restantes seriam agrupados no mercado da aldeia. Então, os homens capazes de trabalhar seriam colocados de parte para as fábricas do regime e para os campos de trabalho, e os restantes, sobretudo mulheres, crianças e idosos, seriam transportados para a floresta e fuzilados à queima-roupa com um misericordioso tiro na nuca. Seriam dadas indicações prévias acerca da técnica mais eficaz de fazer pontaria e disparar um tiro certeiro.


Trapp, ciente de que era a primeira vez que pedia tal coisa aos seus homens, fez ao início da madrugada uma concessão. Quem não quisesse poderia recusar a tarefa. Uma dúzia de homens, uma dúzia apenas, aceitou a oferta de Trapp e entregou a sua arma. Com o passar das semanas, o Batalhão 101 seria chamado para mais algumas "acções judaicas" ("Judenaktion", ou apenas "aktion", eufemismos comuns). O repetir dos massacres teria efeitos diversos nos vários membros do Batalhão. Uma parte significativa dos homens solicitou dispensa a certa altura, alegando falta de forças para participar nos fuzilamentos: nestes casos, o instinto natural falou mais alto e não foi possível, a partir de certa altura, continuar a disparar contra civis inocentes. Outra parte significativa, pelo contrário, adquiriu aparentemente o gosto pelo genocídio e aprofundou os seus requintes de crueldade. Curiosamente, não surgiram homens objectores por razões de consciência. Quem pedia para ser dispensado dos fuzilamentos não o fazia atacando abertamente a ideologia nazi, ou em prol do direito à vida, ou de outros princípios éticos, mas sim assumindo-se como "fraco" ou "sem forças", ou mesmo "doente". Era uma forma de o seu pedido de dispensa não ser visto como um ataque aos companheiros que não o tinham pedido. A última coisa que eles queriam, aparentemente, era quebrar o espírito de grupo. Que lição para os nossos tempos.


Os que pediram para ser dispensados foram-no sem represálias significativas, o que é relevante. Para manter o espírito de grupo, alguns dos líderes mais convictos do Batalhão procuraram levar todos os homens a matar, tentando que todos tivessem o seu quinhão de fuzilamentos, e censuravam verbalmente os que se recusavam; mas os dados históricos recolhidos por Browning mostram que quem quis, pôde evitar participar nas matanças. Mais ainda, outras tarefas permitiam evitar participar nos fuzilamentos sem sequer receber insultos ou ser humilhado perante os companheiros, como por exemplo: vigiar os percursos, organizar as marchas de Judeus, fazer rusgas, recolher e processar os bens materiais das vítimas, ou mesmo inventar alguma tarefa burocrática só para não estar presente na hora "H".


Este é o dado perturbador da obra de Browning: aqui temos homens, na sua maioria de meia-idade, da geração anterior à subida de Hitler ao poder. Numa significativa proporção do Batalhão, não eram homens da Juventude Hitleriana, não eram nazis desde o berço. Falamos de homens comuns, cidadãos de Hamburgo, de classe média, que foram recrutados para uma tarefa horrível, e que podendo evitá-la sem represálias não o fizeram, excepto uns poucos quantos.


Daí o título incómodo que Browning escolheu para o seu livro: "Ordinary Men”: pessoas comuns que se vêem numa situação de inesperado convite à violência, e sem o risco de sérias represálias, na sua maioria acabam por o aceitar. 


Os psicólogos e sociólogos debruçam-se sobre este enigma moral e social, encontrando uma série de razões individuais e colectivas que iluminam também os nossos tempos: 


  • Os homens, embora contrafeitos, não queriam contestar a autoridade de onde emanava a ordem; isto sucedia em todos os graus hierárquicos: Trapp, o comandante do Batalhão, aceitou com repugnância a ordem que lhe chegou do SS Globočnik, um dos organizadores do Holocausto, mas no entanto deu-lhe seguimento, e comunicou a ordem aos seus homens, não sem deixar claro para eles que a ordem o repugnava; há testemunhos de que Trapp chorou no dia do primeiro massacre em Jósefów;
  • Os homens não queriam abandonar os seus companheiros de armas, não queriam ser vistos como cobardes que evitavam o "trabalho duro" enquanto que outros o aceitavam com estoicismo; 
  • Alguns, os mais novos, terão pensado de forma individualista, em como um pedido de dispensa poderia prejudicar uma futura carreira: isto aconteceu nas camadas mais jovens do Batalhão 101, homens de vinte e poucos anos, formados na Juventude Hitleriana;  um homem em particular, o SS Julius Wohlauf, era um entusiasta nazi, e terá disparado o seu gatilho com convicção - os homens da sua unidade recordam, nas suas memórias, o desconforto que sentiram quando o Capitão Wohlauf optou por fazer a sua lua-de-mel em plena "judenaktion", sendo que a sua jovem mulher, Vera (por sinal, grávida na altura), acompanhou os homens numa “aktion” com vivo entusiasmo.


Mas a maioria dos homens não eram como o jovem nazi Wohlauf nem achavam piada à sua noiva Vera: aqui temos um batalhão de homens de meia-idade que não tinham recebido doutrinação particularmente forte, não possuíam carácter violento nem impulsos genocidas. E no entanto, fuzilaram homens, mulheres e crianças indefesas. Esta é a lição a retirar do livro de Browning: etiquetar todos os crimes cometidos no Terceiro Reich como casos de psicopatia não corresponde à verdade.


A obra de Browning faz lembrar o também polémico livro de Hannah Arendt, "Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil", publicado em 1963 (2). Arendt fez a cobertura jornalística do julgamento de Eichmann em Jerusalém, sob as autoridades judiciais do recém-criado estado de Israel. De forma convincente, Arendt descreve o perfil de Eichmann, um dos principais organizadores do Holocausto, como sendo muito mais o perfil de um burocrata eficiente, um carreirista, ao invés do perfil de um monstro sádico ou de um psicopata. 


A polémica gerada pelo livro de Arendt, e mais tarde a polémica gerada pelo livro de Browning, têm pelo menos um elemento em comum: revelam o enorme desconforto causado pela tese de que pessoas normais e banais podem cometer (ou pelo menos tolerar) os piores dos crimes. É certamente mais fácil acreditar que "nós" somos bons, enquanto que "eles", os nazis, eram maus, monstros psicopatas. 


Mas é a inteira mobilização de uma sociedade para o genocídio (ou pelo menos para a fria indiferença da maioria ante a sorte dos Judeus) que grita por uma explicação. 


Da parte que me toca, católico que sou, aceitando a verdade evidente do Pecado Original, as abundantes referência de Arendt e Browning à "banalidade do mal" fazem muito mais sentido do que as explicações simplistas e monocausais baseadas, por exemplo, num "anti-semitismo psicopata" encarnado pelo Terceiro Reich e único àquele contexto geográfico e cultural (3).


Na contagem de cadáveres, o Batalhão 101 matou, no intervalo entre Julho de 1942 e Novembro de 1943, 38.000 pessoas e colaborou na deportação de outras 45.200 pessoas para os campos de extermínio. Os homens sabiam perfeitamente que a morte aguardava os Judeus por eles deportados.


Passamos, depois desta introdução, para uma série de analogias entre os crimes nazis e os novos "crimes" praticados na nossa sociedade: os crimes do aborto e da eutanásia (em breve num hospital perto de si). 


Vários dos que vão ler estas linhas irão gritar de indignação e rasgar as vestes da sua perfeição moral. É a costumeira miopia moral. "Eu não posso ser tão mau assim!"


O que se segue são analogias. A analogia é uma relação de semelhança entre coisas diferentes. A analogia não consiste na equalização forçada de coisas distintas, mas sim em encontrar semelhanças entre coisas diferentes e, neste caso, distantes no tempo e no espaço. Sou o primeiro a dizer que há inúmeras e grandes diferenças entre os crimes dos nazis e os crimes modernos do aborto e da eutanásia. Mas creio que podemos e devemos retirar lições, não tanto das diferenças entre ambos os crimes mas do que é semelhante ou mesmo idêntico em ambos.


Os números do aborto em Portugal são da mesma ordem de grandeza dos mortos do Batalhão 101. 

Faltam-nos hoje cerca de 200.000 portugueses, abortados "legalmente" desde 2007. Muitos seriam hoje crianças e adolescentes se os tivessem deixado viver. São danos colaterais do "progresso" da sociedade, sobretudo da secularização de uma sociedade que perdeu em larga medida a sua bússola moral e que que se tornou indiferente às vítimas do aborto, de uma sociedade embrutecida, cada vez mais ignorante e enganada pela propaganda e pela linguagem dos "direitos reprodutivos" e da "saúde reprodutiva", eufemismos consagrados quer pelos governos quer pelas organizações não-governamentais. 


São obviamente números de barbárie, pois um cadáver que não resulta de morte natural ou acidental mas sim de morte provocada é sempre o resultado de um crime abominável, quaisquer que sejam os motivos ou as atenuantes em cada caso. A sociedade bem-pensante protestará vigorosamente contra esta comparação. Não podemos comparar, dirão eles, o fuzilamento de inocentes à queima-roupa com um aborto cirúrgico ou químico de um ser humano por nascer. No primeiro caso, a morte é feita ao ar livre no meio da floresta com a violência das armas de fogo, ou nas câmaras de gás de um campo de concentração. Muitas vítimas sofrem por antecipação, ao verem o destino que as espera. Já no aborto, a vítima é muito pequena para saber o que lhe irá suceder, e a sua morte é provocada no ambiente asséptico e bem iluminado de uma civilizada "clínica de prestação de IVG". Comme il faut!


(Para sermos justos na comparação, há uma enorme diferença entre os dois tipos de barbárie. No caso do aborto, as mães que abortam são, também elas, vítimas do tremendo crime que acabam por cometer, muitas delas sob forte pressão social, familiar ou profissional. Não creio que sejam muitos os casos de mães que abortaram em total liberdade, sem pressões, e que não se arrependeram de o terem feito, ou que consigam viver sem essa culpa todos os dias da sua vida. Também aqueles que irão pedir a eutanásia serão vítimas do tremendo crime que, no seu desespero, irão pedir a outros para cometer em seu nome.)


A indiferença da nossa sociedade perante o aborto e a eutanásia é comparável à dos alemães durante a Segunda Guerra, indiferentes ao destino dos judeus, previamente desumanizados ao longo de um processo gradual. Os homens do Batalhão 101 passaram por essa fase de desumanização dos Judeus quando viviam na sua cidade natal de Hamburgo, antes de serem recrutados. Do mesmo modo, só foi possível que a sociedade Portuguesa aceitasse a eliminação de 200.000 concidadãos graças a um longo e moroso processo de descida em direcção à barbárie, com diversas etapas de atordoamento moral. Tal como no Terceiro Reich, é preciso “converter” profissionais de saúde, eleitores, forças policiais, tribunais, e por fim toda a sociedade à nova ideologia antes de começar a matar. Foi preciso conduzir gradualmente, qual marionetas, toda uma sociedade inteira até que esta pudesse compreender a alegada justiça, a alegada bondade e as alegadamente superiores razões destes “progressos”. 


Por outro lado, certamente que não se recruta o pessoal médico de uma "clínica" de aborto à porta dos edifícios católicos ou protestantes do nosso País. Tal como foi necessário na Alemanha nazi destruir primeiro a velha ética prussiana, protestante e católica (4), foi também necessário erradicar o espírito católico da Nação Portuguesa, para que muitos Portugueses pudessem aceitar as novas e tenebrosas ideias, ideias que gelariam o sangue dos nossos antepassados.

As ideias nazis tiveram que ser instiladas na Juventude Hitleriana removendo previamente a prática religiosa. Também não se conseguiu em Portugal arregimentar apoiantes do aborto e da eutanásia entre as poucas famílias católicas que restam e que têm as crianças na catequese. Seria interessante investigar quais as convicções e as práticas religiosas dos médicos que praticam o aborto em Portugal, e dos que irão praticar a eutanásia. 


Vejamos um exemplo claro da importância da ética cristã como baluarte contra a barbárie, um exemplo de entre muitos que enchem as páginas do livro "The Righteous - The unsung heroes of the Holocaust" de Martin Gilbert (5). 


Um Judeu, de seu nome David Prital, é aconselhado a procurar refúgio numa família protestante (baptista) algures na Ucrânia rural. Depois de bater à porta, um homem abriu e:

Com lágrimas nos olhos, ele reconfortou-me e imediatamente percebeu quem eu era. Juntos entrámos em sua casa e eu percebi imediatamente que tinha conhecido uma pessoa maravilhosa. "Deus trouxe-nos um convidado importante para nossa casa", disse ele à sua mulher. "Devemos dar graças a Deus por esta bênção". Eles ajoelharam-se e eu ouvi uma oração maravilhosa a sair dos seus corações puros e simples, [que] não [estava] escrita num único livro de orações. Ouvi um canto dirigido a Deus, agradecendo a Deus pela oportunidade de conhecer um filho de Israel nestes dias loucos. Pediram a Deus para ajudar aqueles que se escondiam nos campos e na floresta a permanecerem vivos. Seria um sonho? Seria possível que pessoas destas ainda existissem neste mundo? (...) Eles pararam de rezar e sentámo-nos à mesa para uma refeição, que era agradável. A mulher do camponês deu-nos leite e batatas. Antes da refeição, o chefe da casa leu um capítulo da Bíblia. Aqui está, pensei eu, este é o grande segredo. Neste livro eterno que elevou a sua moralidade até alturas inacreditáveis. Foi este mesmo livro que encheu os seus corações de amor pelos Judeus.

A secularização prévia da sociedade, a erradicação do cristianismo que serve de baluarte contra a barbárie, escancara as portas da sociedade a novos males, que se tornam mais fáceis de aceitar sem resistência.


Outra analogia interessante pode ser encontrada entre os que compunham o "pelotão da frente" dos crimes nazis (polícias e soldados) e os que compõem hoje o "pelotão da frente" dos crimes de aborto e eutanásia (médicos e enfermeiras). Em ambos os casos, a semelhança está na perversão de duas figuras-chave da sociedade ocidental: os agentes da ordem e da paz e os prestadores de cuidados de saúde. Os primeiros têm a obrigação moral de proteger a sociedade e os segundos a obrigação moral de proteger a saúde dos doentes. É preciso reflectir nisto: só é possível cometer crimes em larga escala fazendo primeiro o desnorteamento moral das figuras com autoridade moral na sociedade, de forma a que estas consigam "encaixar" os novos crimes sob a alçada das suas funções sem sentirem grande repulsa. Foi também essencial em ambos os casos conseguir o silêncio do clero, quer com os crimes nazis quer com os novos crimes do aborto e da eutanásia. Quer nos primeiros, quer nos últimos, o clero não se envolve materialmente nos crimes, mas o seu silêncio vale ouro para as forças da morte. No nosso tempo, foi também um factor importante que o escândalo dos abusos sexuais tenha levado a Igreja Católica a perder a coragem moral para falar.


Escapa aos proponentes da eutanásia voluntária que esta não é um acto individual como o suicídio: a eutanásia legalizada implica transformar o pessoal médico e de enfermagem em homicidas. É um homicídio solicitado, sim, mas não deixa de ser homicídio. No momento em que ultrapassa essa fronteira ética, o médico deixou de ser médico e o enfermeiro deixou de ser enfermeiro. Em bom rigor, podemos dizer que venderam a alma ao Diabo, tal como os polícias e soldados do Terceiro Reich abandonaram tudo o que era bom e moral para abraçarem o Mal.


Depois de passarem a fronteira da barbárie, aqueles que deviam ser agentes do bem, ficam reféns de uma perversa racionalização "ex post facto": "Uma vez que abortei, uma vez que eutanasiei, posso alguma vez ser assassino? Mas eu sei que não sou má pessoa! Não sou um assassino! Logo, eu não matei. Logo, o aborto não é matar. Logo, eutanásia não é matar."


A analogia no caso dos juizes e políticos é de outra natureza. Estes não são agentes materiais dos crimes, mas sim agentes morais. Formiguinhas atarefadas, abelhinhas incansáveis que, de lei em lei, de palavrinha em palavrinha, ajustando os decretos e os pareceres até que "a coisa passe", preparam o nosso colapso moral. 


Voltemos aos primórdios do nazismo. O imbróglio legal nos primeiros tempos do regime nazi era este: como evitar que um "bom cidadão ariano" corresse o risco de ser condenado à morte se matasse Judeus? Tal como foi preciso na Alemanha Nazi alterar as leis para evitar que tanta gente boa viesse a ficar sob a alçada da pena capital, também em Portugal foi necessário descriminalizar o aborto e agora a eutanásia. Ainda hoje os defensores do aborto, na sua maioria, não conseguem lidar com o facto de que o aborto é matar e também não irão facilmente aceitar que a eutanásia seja matar. É essencial para a segurança dos perpetradores, e também para criar uma ilusão de conforto moral na sociedade, mudar o enquadramento legal para que a Lei civil, esse garante da paz e da ordem, seja pervertida antes de se cometerem os crimes. A Lei, esse reduto normativo, tem que ser alterada para que o bem passe a ser o mal e o mal passe a ser o bem. Sobretudo numa sociedade secularizada que abandonou a Lei de Deus, é essencial perverter a Lei dos homens, esse último reduto normativo para quem não acredita em Deus.


Outra analogia interessante é a que ocorre entre os dois tipos de despersonalização da vítima. O Alemão pré-nazismo era definido como tal por ter nascido na Alemanha, mas depois passa a ser definido com base numa suposta pureza racial, com base na sua árvore genealógica. Os Judeus deixaram de ser "dos nossos", passaram a ser párias sub-humanos, "Untermenschen". Note-se que este fenómeno não é apenas inerente ao Nazismo, mas a qualquer contexto no qual se pretenda fazer a barbárie. Os bolcheviques, no auge da revolução soviética, tiveram que despersonalizar os apoiantes do antigo regime czarista. Antes de serem mortos, foi preciso convertê-los em ex-pessoas ("Бывшие люди").


Também as vítimas do aborto sofrem um processo prévio de despersonalização: antes de uma sociedade inteira ficar confortável com a aniquilação destas crianças foi primeiro preciso despersonalizá-las. Se estão nas primeira fases de gestação então não são pessoas, são “amontoados de células”. Dizem-nos que se trata de um facto científico. Se as crianças já estão formadas no ventre de suas mães e levam já vários meses de gestação então fica mais difícil usar pseudo-ciência para as retratar como "amontoados de células". Então diz-se que não são pessoas, não têm estatuto ético nem direito à vida, porque não são desejadas pelos progenitores.


Quer os sofistas quer os idiotas úteis perguntam: “porquê deixar vir ao Mundo uma criança indesejada?”, mas esquecem-se de que a criança já veio ao Mundo: aquele já é um ser humano, um ser vivo da nossa espécie. A diferença científica (e portanto ética) entre estar dentro ou fora do útero é nula. E esquecem-se de que, desejada ou não, tal criança é um espécime Homo Sapiens de pleno direito legal e ético, independentemente do que dizem as novas leis adulteradas.


Outra analogia surge das razões individuais invocadas pelas pessoas comuns que cometem crimes hediondos:

  • As convicções individuais que surgem em cada uma das pessoas através da propaganda ideológica; esta propaganda está presente quer no Terceiro Reich quer nas nossas sociedades abortivas e eutanásicas; a máquina de propaganda é essencial em ambos os casos para erradicar convicções tradicionais e instalar as novas convicções;
  • O carreirismo, ou seja, colocar a progressão na carreira e o estatuto social acima de preocupações éticas ou morais;
  • A motivação financeira: alguns dos homens do Batalhão 101 cobiçavam os bens materiais dos Judeus capturados; no caso da nossa sociedade, esta motivação gananciosa passa por se estar disponível para abortar ou eutanasiar num mercado de médicos objectores, o que traz óbvias vantagens financeiras.

Browning encontra estas razões individuais nos homens do Batalhão 101, mas encontramo-las também na nossa sociedade, naqueles poucos médicos e enfermeiros dispostos a abortar e a eutanasiar.


Depois há as razões de grupo: receio de serem conotados com extremistas religiosos, a lógica do “há outros a fazer o mesmo”. A análise do caso do Batalhão 101 permite identificar mais uma razão de grupo que é comum aos homicidas do Terceiro Reich e aos contemporâneos: tal como os soldados não querem deixar o trabalho sujo para os colegas, o mesmo se passa numa classe médica refém da ideologia abortista e eutanásica: o aborto até pode ser trabalho sujo, mas por causa do presumido direito da mãe a abortar alguém tem que o fazer. A eutanásia até pode ser trabalho sujo, mas por causa do presumido direito libertário ao suicídio assistido, alguém tem que o fazer. É uma concepção do dever realmente perversa e satânica. 


Tudo isto leva ao adormecimento moral do médico abortista, do pessoal de enfermagem, e da sociedade em geral: matar torna-se rotina. Surge também uma nova escala hierárquica entre diversos actos todos eles perversos, mas em maior ou menor grau. No caso dos homens do Batalhão 101, havia soldados que, junto à cova com pais e crianças para matar, matavam primeiro o pai ou mãe e só depois a criança. Um dos soldados explicou que o fazia por essa ordem para o pai ou a mãe não sofrerem tanto com a morte do filho, enquanto que a criança pequena não tinha idade para compreender. Havia soldados que tinham a delicadeza ética de matar com um tiro na nuca em vez de usar a metralhadora. Não eram só razões económicas, ou seja, economizar balas, era também para ser uma morte digna, civilizada. Afinal, eles não eram animais, tinham sentimentos humanistas. Os Nazis criavam umas "mises en scène" tranquilizadoras: nas marchas para a morte, muitas vezes punham música a tocar para tranquilizar as vítimas ignorantes do que as esperava. Ao chegarem aos campos de concentração, diziam-lhes que iam tomar um banho. Não só era algo caridoso como evitava perturbações ao processo. Era mais eficiente, mais limpo. Em analogia, também hoje temos aqueles que são caridosos, os que abortam depressa e cirurgicamente, que "interrompem" o feto sem provocar dor, que dão apoio psicológico à mãe que abortou. Pelo menos não abortam num vão de escada! São humanistas! Afinal estamos no século XXI!


Outra analogia interessante encontra-se na dinâmica entre os homens e as mulheres que cometem os crimes. Wendy Lower escreveu sobre as mulheres do Reich: "Hitler's Furies: German Women in the Nazi Killing Fields" (6). A historiadora pinta um retrato gélido de mulheres de várias origens sociais e profissões, como enfermeiras, funcionárias dos campos e mulheres de soldados e oficiais de polícia ou das SS. Vê-se como um certo espírito feminista foi usado por estas mulheres como móbil para a crueldade: muitas não queriam ficar atrás dos maridos ou dos colegas de trabalho. Recordo-me daquela mulher nazi que encontrou várias crianças judias a vaguear esfomeadas na floresta perto da sua quinta. Acolheu-as, deu-lhes de comer, e depois com espírito caridoso levou-as a passear à floresta para as matar a sangue frio com a sua pistola. Terão morrido felizes, sem suspeitar de nada. Imaginamos como terá sido a conversa de casal ao jantar nesse dia. Afinal, uma mulher forte consegue fazer o que um homem consegue! Encontramos algo parecido, quando o feminismo vem em socorro da mentalidade abortista: os médicos homens que até discordam do aborto, mas que o praticam porque não querem ser chamados de machistas, não querem ser mal-vistos por negarem um "direito da mulher"...


Daqui a algumas décadas os historiadores irão analisar as causas que levaram um país de tradição católica como Portugal a ser um “case study” de aceitação pacífica da mentalidade abortista e eutanásica.


Estou convencido de que os historiadores do futuro não irão concluir que o Portugal do nosso tempo se tinha tornado num covil de psicopatas cruéis e indiferentes, mas irão, sim, concluir que o mal se tinha banalizado entre cidadãos comuns. Irão aplicar a Portugal a tese de Arendt: o mal é frequentemente banal. A sociedade estava, dirão eles, desprovida de psicopatas poderosos, mas recheada de figuras banais e medíocres:

  • Os políticos pró-abortistas e pró-eutanásia não eram monstros, mas na sua maioria oportunistas a fazer carreira à custa das ideias da moda, e que raros eram os que o faziam a partir de uma coerência doutrinal ou ideológica
  • Os eleitores que votaram nesses políticos não eram monstros nem gente fria e indiferente; tal como os eleitores de Hitler, seguiram os flautistas de Hamelin do seu tempo, encantados pelas lindas histórias dos jornalistas e cegos pela propaganda dos “media”, e sobretudo suavizados pelo sono das suas consciências secularizadas; se Deus não existe, tudo é permitido;
  • Os juristas e constitucionalistas que aceitaram os “novos direitos” não eram monstros; mas muitos procuravam apenas a vida pacata do profissional e do académico, que só querem que a vida lhes corra de feição e que pensem bem deles;
  • Médicos e pessoal de enfermagem que cometeram abortos e eutanásias não eram monstros; tal como os homens do Batalhão 101, alguns até não gostavam de fazer abortos ou de dar a injecção letal ao senhor Joaquim ou à senhora dona Lurdes, mas não podiam deixar o “trabalho sujo” para os seus colegas não objectores; também não podiam ser vistos como maus profissionais indiferentes ao pedido de uma mulher grávida, de um doente ou de um idoso em sofrimento: o que pensariam deles se nessas alturas decisivas optassem por colocar certos princípios à frente do juízo da opinião alheia? Com o passar do tempo, por volta do aborto n.º 276 ou da eutanásia n.º 78, a coisa já fica mais fácil e rotinada: tal como o homicida profissional do Batalhão 101, que apontava à nuca com precisão para minorar o sofrimento da vítima, ou que fazia conversa simpática com a vítima a caminho da vala comum, os profissionais de saúde que amadurecerem a técnica da eutanásia aprenderão a colocar uma musiquinha “zen" no seu gabinete, um pouco de incenso para relaxar, um Buda na prateleira, um pouco de conversa amiga com a senhora dona Lurdes e uma foto dos netos ao senhor Joaquim antes de dar a injecçãozinha; assim irão racionalizar os seus crimes;
  • Os académicos que defenderam o aborto e a eutanásia também não eram monstros: tinham que conseguir publicar em jornais “peer reviewed”, e não era nada fácil publicar se não defendessem as ideias da moda, se não seguissem os pensadores “obrigatórios”; afinal, se o famoso e incontestável Peter Singer defendia o aborto e a eutanásia, quem seria eu, um pequeno académico Português, para discordar? Algo semelhante se passou com os académicos do Terceiro Reich e com os seus artigos “científicos” acerca do aperfeiçoamento racial: também não eram monstros, apenas académicos tentando fazer pela vida num novo contexto social;
  • O Padre e o Bispo que não fizeram grandes ondas acerca do aborto e da eutanásia, preferindo falar sobre os emigrantes e sobre o aquecimento global, também não eram monstros; imbuídos do melhor instinto de sobrevivência, em tempos nos quais o peditório rendia pouco, as ajudas do Estado faziam falta e a imprensa não era amiga, era mais cómodo defender as causas do “zeitgeist” do que combater por causas que julgavam perdidas; mas o juízo que a História fez aos prelados que apoiaram o nazismo será sempre menos severo do que o Juízo que o próprio Deus fará aos trabalhadores da Sua seara, aos pastores do Seu rebanho que foram mornos: Deus tenha misericórdia deles...
  • O cidadão comum que apoiou o aborto e a eutanásia no café com os colegas de trabalho, no jantar de família ou nas redes sociais não era um monstro; tal como o cidadão alemão durante a Segunda Guerra, também eles não queriam sair do pensamento normativo da maioria, não queriam ficar mal-vistos nem ser chamados de fundamentalistas medievais; porque não haveriam eles de apoiar o aborto e a eutanásia se toda a gente apoiava? Não lhes aquecia nem arrefecia... também aos alemães não era assim muito relevante saber o que tinha acontecido à família judia do 3° Esquerdo... e um Alemão de boas famílias por volta de 1935 a fazer algo em defesa dos Judeus incorria em provável morte social e perda de boas amizades - uns anos mais tarde, tal acto acarretaria mesmo penas pesadas; nos nossos dias, o aborto e a eutanásia permitem ao cidadão comum oficializar a sua indiferença: mais vale abortar a filha da menina Joana, que ficou grávida enquanto estudava, pois se nem ela, nem o namorado, nem os avós querem o bebé, porque há-de tal criança ser um peso no Estado Social ou um peso na consciência do cidadão comum? Por seu lado, a senhora dona Lurdes, cansada de esperar anos pela prótese prometida pelo Serviço Nacional de Saúde, paralisada em casa e sem filhos que se interessem por ela, não quer ser um fardo, nem para ela, nem para o Estado Social, nem para a consciência do cidadão comum: o cidadão comum agradece então à senhora dona Lurdes e elogia-a pelo seu exemplo de cidadania livre, ou de liberdade cidadã, pois a morte da senhora dona Lurdes é o melhor desfecho para todos, bem se vê, e tudo em nome da liberdade!

Este texto já vai longo, mas poderia ser muito maior, dada a riqueza infindável destes exercícios de analogia.


Os historiadores de amanhã irão concluir que várias causas, e complexas, levaram a que uma imensidão de pessoas comuns viessem a cometer, aplaudir e tolerar crimes hediondos como o aborto e a eutanásia com a maior das banalidades.


O Mal é banal e está acessível a todos.

O Bem, pelo contrário, é escasso, árduo, e nem todos estão dispostos a aceitar os sacrifícios que o Bem sempre exige. Mas todos seremos um dia julgados pelo Tribunal que não falha nem erra. 

Quantus tremor est futurus,

Quando Iudex est venturus,

Cuncta stricte discussurus!

(1) Deve-se procurar a edição mais recente, de 2017, pois foi ampliada com comentários do autor às críticas de Goldhagen (ver nota 3 abaixo): https://www.amazon.com/gp/product/0062303023/ref=dbs_a_def_rwt_hsch_vapi_tpbk_p1_i0


(2) https://www.amazon.com/Eichmann-Jerusalem-Banality-Penguin-Classics/dp/0143039881


(3) É a tese de Daniel Jonah Goldhagen, agressivo crítico de Browning, na sua obra de 1997 "Hitler's Willing Executioners: Ordinary Germans and the Holocaust", https://www.amazon.com/Hitlers-Willing-Executioners-Ordinary-Holocaust/dp/0679772685; Goldhagen defende uma tese monocausal para o Holocausto ancorada no anti-semitismo, aproveitando o seu preconceito anticristão para culpar católicos e protestantes na Alemanha pré-Nazi de terem preparado o terreno para Hitler, como se o século XX não tivesse disponibilizado inúmeras outras ocorrências de genocídio noutros locais e contextos.


(4) Veja-se a obra de Harold Deutsch, "Hitler and His Generals: The Hidden Crisis, Jan.-June, 1938", que retrata como Hitler e os seus sequazes conseguiram derrubar e silenciar a oposição por parte da elite prussiana das Forças Armadas alemãs, como ele incriminou militares "da velha guarda" como Blomberg e Fritsch, homens ainda imbuídos dos valores cristãos e da velha honra militar, e os arredou para abrir caminho para uma nova geração de militares formados no Nazismo: https://www.amazon.com/Hitler-His-Generals-Hidden-Jan-June/dp/0816606498/


(5) Página 13, https://www.amazon.com/Righteous-Unsung-Heroes-Holocaust/dp/0805062610


(6) https://www.amazon.com/Hitlers-Furies-German-Killing-Fields/dp/0544334493/


Bernardo Motta

domingo, 3 de janeiro de 2021

Gnadentod

Este texto vem a propósito da "legalização" da eutanásia, algo que será feito em breve por iniciativa de "católicos" como Pureza e com o beneplácito provável de "católicos" como Marcelo. Algo que será feito à bruta e pela calada, apesar do esmagador repúdio dos juristas, dos constitucionalistas e, mais importante, dos profissionais de saúde. Algo que será feito enquanto o povo se distrai a contar os mortos Covid-19, iludidos pelos "media" supervisionados pelo Estado.
É mais fácil fazer passar uma lei iníqua se primeiro se fizer a adequada conversão de um vocábulo com conotação negativa para o respectivo vocábulo na novilígua, substituindo-o por um vocábulo doce e amanteigado.
Por isso, os defensores do aborto (que consiste na morte de seres humanos por nascer) sempre exibem com orgulho o vocábulo em novilinguês "IVG", ou "Interrupção voluntária da gravidez". Note-se que a palavra "interrupção" é uma fuga lexical, para evitar conjurar imagens inerentes ao acto de matar. "Interromper" já não será matar. Por outro lado, "voluntária" é uma palavra útil para vincar a liberdade absoluta de quem decide. Foi assim, entre outras tácticas, que se edulcorou uma população anestesiada para a fazer aceitar essa coisa hedionda chamada aborto, um crime condenado pela esmagadora maioria dos nossos antepassados.
Estes estratagemas não são de agora, como dizia.
Vale a pena recordar, em vésperas de mais uma imoralidade legislativa, como Adolf Hitler (esse humanista) também usava os eufemismos de forma eficaz e elegante.
Com este documento, Hitler "legaliza" a eutanásia, a doce morte:
“BERLIM, 1 de Setembro de 1939
O reichsleiter Bouhler e o Dr. Brandt são responsáveis por expandir os poderes dos médicos, a serem determinados pelo nome, para que, de acordo com o julgamento humano, pacientes incuráveis ​​possam receber morte graciosa se sua condição for avaliada criticamente. - A. Hitler"

 

Veja-se a elegância:

- "expandir os poderes dos médicos": desta forma, faz-se a violência lógica de enquadrar o homicídio na esfera de Hipócrates, na esfera dos actos e dos poderes médicos, conseguindo-se ocultar a contradição inerente: matar passa a ser um acto médico

- "de acordo com o julgamento humano", "avaliada criticamente": linguagem escolhida para dar um ar científico e racional ao crime

- "morte graciosa": esta é a minha expressão preferida; quanta elegância no original alemão "Gnadentod": o vocábulo "gnade" remete para "ajuda", "misericórdia", "graça", "clemência"

Tenho a certeza de que a lei a ser carimbada em breve por Marcelo não será escrita de forma tão elegante, mas mais ao estilo burocrático dos analfabetos que escrevem as nossas leis.

Mas lá encontraremos certamente vocábulos que, ao bom estilo hitleriano, vão remeter para uma tentativa de legitimar o homicídio dos doentes e dos idosos como sendo um acto médico, muito sério e científico, e feito com a melhor das compaixões e misericórdias pelo doente e pelo idoso. Afinal, somos governados por humanistas ou não? Não é humanista aceitar que uma pessoa gravemente doente ou muito idosa é uma vida indigna de ser vivida (ou como diziam os nazis, "Lebensunwertes Leben")?

PS: Original em alemão:

„BERLIN, DEN 01. Sept. 1939
Reichsleiter Bouhler und Dr. med. Brandt sind unter Verantwortung beauftragt, die Befugnisse namentlich zu bestimmender Ärzte so zu erweitern, dass nach menschlichem Ermessen unheilbar Kranken bei kritischster Beurteilung ihres Krankheitszustandes der Gnadentod gewährt werden kann. -- A. Hitler“

domingo, 14 de abril de 2019

Conferência NEC: " Progresso da Ciência - O fim da Fé?" (Parte II)


Parte II - Notas sobre Curas em Lourdes



As aparições a Bernardette Soubirous (1844-1879) decorreram entre 11 de Fevereiro e 16 de Julho de 1858, em Lourdes, nos Pirinéus franceses, quando Bernardette tinha 14 anos.

Uma pequena amostra da sua personalidade:
  • Quando o Padre Corbin lhe perguntou: “O que dirias se o Bispo de Tarbes julgasse que estavas enganada?”, ela respondeu: “Eu nunca seria capaz de dizer que não não vi [o que vi] e que não ouvi [o que ouvi].”
  • Quando um intelectual a pressionou com dúvidas acerca das visões, Bernardette respondeu: “É meu dever falar-lhe delas, [mas] não é o meu dever fazê-lo acreditar nelas.” 
  • Extremamente humilde: Bernardette não chegou a assistir à consagração da Basílica de Lourdes  em 1876, pois seguiu a vida religiosa junto com as Irmãs da Caridade em Nevers; a dada altura da sua vida religiosa, comentou desta forma as aparições da qual ela foi a protagonista: “A Virgem usou-me como uma vassoura para varrer o pó. Quando o trabalho está terminado, a vassoura é colocada de novo atrás da porta”
  • Morreu aos 35 anos de tuberculose
Primeiros relatos de curas surgem logo em 1858.
Primeiros atestados médicos em 1873.
Médicos-residentes em Lourdes:
  • G. F. Dunod de Saint-Maclou, 1883–91
  • Gustave Boissarie, 1891–1917 (assistido por Pierre Cox)
  • Edouard Le Bec (1919–23)
  • A. Marchand e M. Petitpierre
  • Auguste Vallet (1927 a 1947)

O Bureau Médico de Lourdes terá registado entre 1858 e 1976 uma estimativa de 4.516 curas.

Apenas 68 curas foram reconhecidas como milagres pela Igreja Católica (1,5% das curas):
  • 7 milagres em 1862
  • 33 milagres entre 1907 e 1913
  • 22 milagres entre 1946 e 1965
  • 5 milagres entre 1976 e 2005

A cura de Maire Bailly

A cura de Marie Bailly não faz parte da lista de curas milagrosas reconhecidas pela Igreja Católica, mas é interessante na medida em que foi atestada por um médico muito famoso.


Testemunha principal: o médico francês Alexis Carrel (1873-1944), que recebeu o Prémio Nobel da Medicina em 1912 pelo seu trabalho pioneiro em técnicas de sutura vascular e no transplante de vasos sanguíneos e órgãos.

Acompanhou e documentou o processo de cura de Marie-Louise Bailly (23 anos), quando esta estava num estado terminal de peritonite tuberculosa. 

Marie nasceu a 29 de Janeiro de 1879, em Lyon. Os seus pais morreram ambos por volta dos 50 anos com tuberculose pulmonar. Um dos seus irmãos morreu também de tuberculose. Marie contraiu tuberculose pulmonar em 1898, com apenas 9 anos de idade. A situação evoluiu para meningite tuberculosa. Quando estava às portas da morte, ter-lhe-á sido aplicada água de Lourdes, e os sintomas desapareceram (não conheço testemunhos médicos relativos a esta cura), e não é desta primeira cura que vou falar. 
A segunda cura está bem documentada e atestada por vários médicos. Marie contraiu peritonite tuberculosa em 1901. O seu abdómen ficou cada vez mais distendido, e cada vez consumia menos alimentos, muitos dos quais vomitava. Foi considerada pelo Dr. Roy, do Sanatorium de Lyons, como inoperável. Marie estava convencida de que seria curada por um milagre, pois dizia ter tido uma locução interior de Nossa Senhora, com estas palavras: “Je guérirai”. 
De forma mais intrigante, Marie dizia que Nossa Senhora lhe daria uma cura milagrosa para obter a conversão de um descrente. À data, ela não conhecia ainda Alexis Carrel, que só se converteria à Fé católica por volta de 1942, dois anos antes de morrer. Toda a vida, Carrel procurou uma explicação natural para a cura que ele presenciou em 1902, em Lourdes.

As notas que o Dr. Carrel recolheu sobre essa cura estão no Dossiê 54 dos Arquivos de Lourdes.
Em 1949, Carrel escreveu o relato da cura de Marie Bailly sob forma literária: “Le Voyage de Lourdes”. O que se segue foi retirado desta obra, bem com dos depoimentos de Carrel que se encontram nos Arquivos de Lourdes.

Marie estava decidida a ir a Lourdes para obter o milagre que esperava, apesar do estado terminal da sua doença.
Carrel cruza-se pela primeira vez com Marie Bailly a bordo do comboio de Lyons para Lourdes, que partiu à uma da tarde de 26 de Maio de 1902.
Marie já não comia há 4 dias, e foi com a ajuda da enfermeira Gabrielle Goirand que ela se conseguiu esgueirar para dentro do comboio, contra todas as indicações médicas de que não poderia viajar. 
A meio da madrugada, Carrel é chamado pela enfermeira para acorrer a Marie, que estava no compartimento 56 e tinha entrado em coma.

Sigamos o relato literário de Carrel (o autor usa o nome “Marie Ferrand” para Marie Bailly, e usa consigo mesmo o pseudónimo “Lerrac”, o inverso de “Carrel”):
“A noite parecia demasiado longa. Para todos os desafortunados, para os doentes que tremem e sofrem assim como para os que deles cuidam, as três horas da madrugada - aquela hora mesmo antes que o dia venha substituir a noite - é uma hora de medo, angústia e desespero. Quando o comboio entrou na próxima estação, a enfermeira que estava a tomar conta de Marie Ferrand [Bailly] toda a noite, assustada quando a sua paciente entrou em coma, foi a correr chamar Lerrac [Carrel].Marie Ferrand [Bailly] estava deitada no seu colchão, meia vestida, a sua cara estava verde, mas tinha recuperado a consciência. Só havia uma luz ténue no compartimento. O calor era abrasador. Lerrac [Carrel] baixou a janela e a corrente de ar fresco trouxe-lhe os sentidos de volta.“Nunca chegarei a Lourdes”, suspirou ela angustiada.De cada vez que o longo comboio se detia numa paragem, os passageiros chocavam uns contra os outros e estes choques repetidos infligiam um sofrimento inimaginável nos doentes.“Ela parece agonizante”, disse a enfermeira, “de cada vez que o comboio entra numa estação. Estou sempre a pensar que ela vai desmaiar e não sei o que fazer por ela”.“Vamos dar-lhe uma injecção imediatamente”, disse Lerrac [Carrel].A enfermeira puxou a manga descobrindo o braço macerado de Marie Ferrand [Bailly]. Lerrac [Carrel] encheu a seringa hipodérmica Pravaz com uma solução de morfina, e, dado que não tinha uma lâmpada a álcool, colocou a seringa contra a luz de um fósforo aceso; depois enfiou a seringa sob a pele branca, e a seringa manchada de fumo deixou uma pequena mancha preta [na pele].“Daqui a cinco minutos a dor terá desaparecido”, disse ele. “Entretanto, deixe-me olhar para o abdómen e aplicar-lhe algum láudano”.Com destreza, a enfermeira destapou a barriga distendida de Marie Ferrand [Bailly]. A pele reluzente estava esticada e dos lados as costelas apareciam salientes. O inchaço era aparentemente causado por massas sólidas, e havia uma bolsa de fluido sob o umbigo. Era um caso clássico de peritonite tuberculosa. Lerrac [Carrel] tocou no abdómen com as costas dos seus dedos indicador e médio. A temperatura estava acima do normal. As pernas estavam inchadas. Quer o batimento cardíaco quer a respiração estavam acelerados.”
O comboio chegou a Lourdes ao meio-dia do dia 27. Marie estava então inconsciente. Só recuperou a consciência à noite e passou-a no Hospital. Entretanto, o Dr. Carrel conversa com um colega acerca do caso de Marie:
“Esta infeliz rapariga está no estágio final de uma peritonite tuberculosa. Conheço a história dela. A família toda morreu de tuberculose. Ela teve lesões tuberculosas, lesões nos pulmões, e desde os últimos meses uma peritonite diagnosticada quer por um médico de clínica geral quer pelo bem conhecido cirurgião de Bordeaux, Bromilloux. A sua condição é muito grave; tive que lhe dar morfina durante a viagem. Ela pode morrer a qualquer momento (…). Se um caso como o dela fosse curado, seria sem dúvida um milagre. Eu nunca mais duvidaria; tornar-me-ia num monge!”
No dia seguinte, dia 28, a enfermeira Goirand pediu a Marie, às portas da morte, que escrevesse uma última carta para a sua família. Ela recusou, dizendo que só escreveria uma carta à família depois de curada. A enfermeira Goirand, pressentindo um milagre, pede uma maca e com ajuda, leva Marie para os banhos de Lourdes. No seu testemunho posterior, Marie diz que não se lembra de ser levada para as águas de Lourdes, mas lembra-se de uma forte dor ardente abdominal quando lhe despejaram água de Lourdes sobre o abdómen. Por causa dos seus gritos, pararam de lhe aplicar a água, mas pouco depois, aliviada a dor, e com a concordância de Marie, voltaram a despejar água sobre o abdómen. Marie disse que, da segunda vez, a água de Lourdes já não provocou dor, nem ardor, mas sim “doçura”. Nesse momento, começou a respirar normalmente (o que antes não era possível). Perante isto, várias pessoas aproximam-se de Marie, incrédulas.
À terceira vez que se aplicou água sobre o abdómen, a distensão abdominal começou a diminuir. Ela levantou-se da maca e pediu que a levassem à igreja. Muitas pessoas, perante estes factos, começaram a rezar e a cantar. Marie foi levada ao Bureau Médico e foi analisada por vários médicos que lhe disseram que ela estava francamente melhor.

Assim a encontrou Carrel:
Marie Ferrand [Bailly], num casaco branco, estava sentada na cama. Embora a sua cara estivesse ainda cinzenta e emaciada, estava iluminada com vida; os seus olhos brilhavam, uma cor ténue tingia as suas bochechas. As linhas nos cantos da sua boca, marcadas pelos anos de sofrimento, ainda se viam. Mas uma indescritível serenidade emanava da sua pessoa que parecia iluminar aquela triste ala [de hospital] com alegria.

“Doutor”, disse ela, “eu estou completamente curada. Sinto-me muito fraca, mas acho que até consigo andar.”
Lerrac [Carrel] colocou a sua mão no pulso dela. A pulsação estava calma e regular, oitenta vezes por minuto. E todavia apenas poucas horas atrás estava tão acelerada, tão trémula, que ele mal a podia medir. A sua respiração tinha-se também tornado completamente normal; o seu peito subia e descia com uma regularidade lenta. (…)
A pele [do abdómen] estava macia e branca. Acima das costelas estreitas estava o pequeno, achatado e ligeiramente côncavo abdómen de uma jovem rapariga mal nutrida. Levemente, ele colocou as suas mãos nas paredes do abdómen e pressionou; estava macio, flexível e extremamente fino. Sem lhe causar qualquer dor, ele conseguiu palpar o abdómen, os lados, a pélvis, à procura de vestígios da distensão e das massas duras que ele tinha antes encontrado. Tinham desaparecido como se fossem um sonho mau. Toda a região do abdómen parecia completamente normal. Apenas as pernas estavam inchadas. Ela estava curada. No espaço de poucas horas, uma rapariga com a face já azul, um abdómen distendido, e um coração fatalmente acelerado estava agora recuperada, excepto pela sua fraqueza e emaciação. (…)
Ele não tinha ouvido os Doutores J. e M. a entrarem (…). Subitamente, deu por eles, de pé ao seu lado.
“Ela parece curada”, disse ele. “Não encontro nada de mal. Por favor examinem-na vós mesmos.”
Enquanto os seus dois colegas palpavam cuidadosamente o abdómen de Marie Ferrand [Bailly], Lerrac [Carrel] pôs-se de lado a vê-los com olhos cintilantes. Não podia haver dúvida alguma de que a rapariga estava curada. Era, obviamente, a coisa mais portentosa que ele alguma vez vira. Era ao mesmo tempo assustador e maravilhoso ver a vida a voltar a um organismo que estava praticamente destruído por anos de doença. (…)
Virando-se para M., que ainda palpava o abdómen de Marie Ferrand [Bailly], Lerrac [Carrel] perguntou se encontrara alguns sintomas.
“Absolutamente nenhum”, respondeu M. “Mas eu quero auscultar a sua respiração”.
Ele encostou o seu ouvido ao peito de Marie Ferrand [Bailly]. Ao mesmo tempo, o Dr. J. estava a medir a pulsação. (…)
Finalmente, os dois médicos terminaram o seu exame.
“Ela está curada”, disse o Dr. J., profundamente comovido.
“Não encontro nada”, disse M. “A sua respiração é normal. Ela está boa. Ela pode-se levantar.”
“Não há nenhuma explicação para esta cura”, disse o Dr. J.
“É um milagre”, disse C. “Eu rezei por si, Dr. Lerrac [Carrel]. Talvez isto o traga de volta para a Igreja?”
“É certamente um milagre”, disse Lerrac [Carrel] em voz baixa, “a não ser que eu me tenha enganado no meu diagnóstico”. (…)
“O que é que vai fazer”, perguntou Lerrac [Carrel] a Marie Ferrand [Bailly], “agora que se sente curada?”
“Vou juntar-me às irmãs de São Vicente de Paula, e tratar dos doentes”, respondeu ela.

Para esconder a emoção, Lerrac [Carrel] saiu do quarto.” 
No dia seguinte, 29 de Maio, Marie vestiu-se. Já se conseguia levantar e sentar sem dores. Nesse dia, quis mergulhar por inteiro nas águas de Lourdes. Fê-lo sem qualquer dor.
Marie fez a viagem de volta para Lyons, uma viagem de 24 horas, e saiu pelo seu pé do comboio para a estação. Escreveu ela: “Apanhei o eléctrico, o que não me cansou, e corri em lágrimas para os braços da minha família que nem me reconhecia”. 

Em Lyons, o Dr. Roy, bem como o próprio Carrel, acompanharam-na nas semanas seguintes. Das notas do Dr.  Roy a 15 de Julho: “A cura parece completa. O seu peso aumenta um quilograma por semana. A condição geral é excelente. Examinámos o seu estado psicológico. Ela parece normal. Uma jovem senhora muito modesta e calma. Razoavelmente inteligente. Memória muito lúcida. Sem misticismo. Tímida e discreta. Fala da sua cura apenas quando lhe perguntam. Aparenta não ter desequilíbrio mental.”

A 5 de Setembro, o Dr. Roy parece procurar despistar perturbações do foro psicológico, mas encontra tudo normal: “A paciente está alegre. Fala prontamente. Inteligência normal. Memória perfeita. Nada perturbada pelo interrogatório, olha na cara sem insistência ou reserva excessiva”. O Dr. Roy estava convencido de que Marie teria um relapso no espaço de um ano.

A 6 de Agosto foi aceite como postulante pelas Irmãs da Caridade de Lyons. Em meados de Novembro tinha recuperado 16 quilogramas. A 29 de Novembro foi para Paris, seguir vocação religiosa no convento da Rue du Bac. Foi lá visitada pelo Dr. Boissarie, do Bureau Médico de Lourdes, em Fevereiro de 1903. Em 1905, três anos depois da cura, Marie continuava a receber, e a responder a, pedidos periódicos de análises à urina e ao sangue por parte do Dr. Boissarie. Marie fez os votos a 8 de Dezembro de 1907, e antes de os fazer, foi pedido um parecer médico que refere: “a sua força física não lhe falha. Ela tem força para lavar a roupa e engomar”. Morreu de morte natural em Montolieu, a 22 de Fevereiro de 1937, com 58 anos de idade.

Depoimento do Dr. Carrel - 28 e 29 de Maio de 1902
14:20: parece que apenas o abdómen foi tocado por uma pequena quantidade de água. A sua aparência não mudou. A sua respiração está talvez menos rápida. Ela é agora levada para a frente da Gruta para a primeira fila reservada para os doentes. Poucas pessoas ainda se encontram no local. As cerimónias religiosas ainda não começaram. Ela está perfeitamente visível. Fácil de ser observada.
14:30-14:40: O ritmo da respiração abrandou e torna-se mais regular. A sua face muda um pouco. Um leve toque de cor-de-rosa espalha-se sobre a pele. Ela parece ligeiramente melhor. Ela reconhece a enfermeira e ri-se para ela.
14:55: O perfil do corpo modifica-se e a protuberância do abdómen parece achatar-se um pouco. O seu estado geral melhora e de forma visível.
15:10: As mãos, as orelhas e o nariz estão quentes. A respiração abrandou para cera de 40 por minuto. O batimento cardíaco, muito rápido a 140 por minuto, está mais forte e regular. A nossa paciente diz-me que se sente melhor. A enfermeira tenta levá-la a beber um pouco de leite. Ela bebe-o. Não vomita.
15:20: Ela levanta a cabeça de forma espontânea e olha à volta. Ao nível do abdómen, a manta está achatada. As pernas movem-se e o corpo vira-se a partir da direita. A face tornou-se calma e rosada.
15:45: A paciente é levada, ainda deitada na maca, até à Igreja do Rosário
16:15: A melhoria é ainda mais marcada e torna-se óbvia para pessoas à volta que não estão familiarizadas com assuntos médicos. Ela ainda está deitada de costas. A respiração é calma. A face um pouco rosada. A protuberância no abdómen desapareceu completamente. Ela diz-me que se sente muito bem e, se tivesse coragem, levantar-se-ia. A sua aparência mudou tanto que toda a gente repara. No meio do entusiasmo delirante da multidão ela é levada para o Bureau Médico do Dr. Boissarie.
19:30: A parede abdominal é flexível, elástica, e com uma ligeira depressão normal para uma senhora de 22 anos de idade e muito magra. Esta depressão permite uma exploração minuciosa dos órgãos sob [a pele]. A aorta bate sob o dedo. O cólon é investigado. Algumas bolas de matéria fecal no cólon sigmoidal estão a descer. Do lado direito, na profundidade do abdómen, há uma massa dura que ocupa a cavidade abdominal inferir e chega à região lombar. Encontro, usando as duas mãos, um nódulo muito duro mas não doloroso, do tamanho de um antebraço, encaixado contra a parede posterior do abdómen que não se move durante a respiração. Os rins não estão caídos. Nenhumas fezes desde a partida de Lyons. Nenhuma descarga urinária. Micturição normal. 
29 de Maio, 6:30: Condição geral perfeita. A paciente levanta-se sozinha e toma o pequeno almoço. Respiração 18 [vezes] por minuto, batimento cardíaco 88 [vezes por minuto]. O abdómen está absolutamente normal. A massa dura, observada ontem na região ilíaca lombar, desapareceu completamente. Existe ainda alguma tumefacção na cavidade abdominal inferior.

Depoimento do Dr. Paul Geoffray, natural de Rive-de-Gier, no Loire
“O abdómen era uma massa hemisférica enorme e muito dura e formava um só bloco muito sensível à qualquer palpação. A paciente perguntou-nos, através das suas enfermeiras, se estava proibida de ir à Gruta. É claro que a deixámos em completa liberdade, embora receássemos que o desfecho pudesse ser fatal e iminente. Mademoiselle Bailly foi levada à Gruta num estado de total prostração. Encontrei-a a caminho. À noite, a caminho do Hospital, encontrei-a, para meu espanto, com a sua cabeça levantada, respondendo às minhas questões com um sorriso e respirando facilmente. Eram cerca de 7 horas da noite. Não a examinei pois estava apertado de tempo. Admito que esperava apenas uma melhoria fictícia, causada pelas emoções. O meu espanto foi profundo esta manhã, Quinta-feira, 29 de Maio de 1902, quando eu me aproximei da cama da Mademoiselle Bailly, ao ver, atrevo-me a dizer, a mudança visível que tinha tido lugar em alguém tão doente na véspera. A respiração e a pulsação quase normais. Em relação ao abdómen, nada restava daquela enorme massa dura registada ontem. O abdómen recuperou o seu [estado] normal, absolutamente normal, flexibilidade. Total ausência de dor sob qualquer palpação. Medi o pulso na aorta abdominal. Do enorme tumor registado ontem só um pequeno nódulo resta, não maior do que um pequeno rim, situado no hipocôndrio direito, sem causar dor alguma. A paciente sente-se tão bem que quer caminhar até à Gruta, o que não está autorizada a fazer devido à sua fraqueza. Ela diz-me que se levantou de manhã sozinha por poucos momentos. Este atestado médico que eu assino é a pura verdade. Devo dizer ainda que nunca uma peritonite tubercular foi curada, por meios humanos, em poucas horas, como aconteceu aqui? Lourdes, 29 de Maio de 1902. [assinatura] Dr. Geoffray (Paul).”

Conversão de Carrel
  • Foi um processo muito longo, o da conversão de Carrel, durou quase a vida toda
  • Em 1902, Carrel chegou agnóstico a Lourdes, e depois de ver a cura de Marie Bailly, regressou a casa agnóstico, embora certamente abalado e perplexo com o que viu, sem saber explicar a cura
  • Teve ainda mais uma oportunidade de presenciar outro milagre em 1910, durante a sua terceira viagem a Lourdes: uma criança de 18 meses que nasceu cega e recuperou a visão, mas também não foi desta vez que Carrel se converteu; o bebé curado estava nos braços da enfermeira Anne-Marie de la Motte, com quem Carrel se casou no Natal de 1913
  • Quase até ao fim da vida, Carrel estava convencido de que a oração e a religião abriam as portas para uma parte desconhecida da Natureza, que devia ser estudada cientificamente, procurando talvez de forma subconsciente uma explicação “cientifica” para os milagres que presenciou, mas sem aceitar um Deus pessoal a quem se pode rezar
  • Em 1942, encontramos no seu diário as seguintes palavras, sinal de uma mudança grande: “Acredito na existência de Deus, na imortalidade da alma, na Revelação e em tudo o que a Igreja Católica ensina, na sua admirável doutrina de sacrifício que é o seu cerne”.
  • Em 1943, sofre um ataque cardíaco pouco grave, seguido de outro mais grave em 1944
  • Por volta de Outubro de 1944, já tinha regressado em força à Igreja Católica da sua infância e juventude
  • Poucos dias antes de morrer, diz a um Padre seu amigo (Monsenhor Hamoyon): “Quando nos aproximamos na própria morte, apercebemo-nos do nada de todas as coisas. Ganhei fama. O mundo fala de mim e das minhas obras, e no entanto eu sou uma mera criança perante Deus, e uma pobre criança ainda por cima.”
  • Morreu na madrugada de 5 de Novembro

Estatísticas de curas em Lourdes (1909-1914, 1947-1950, 1950-1976)





Fontes: